sábado, dezembro 09, 2017

...E UM BEIJO P'RA QUEM FICA...


Os mais atentos irão reparar que esta pequena homenagem aos Xutos & Pontapés, demorou muito mais a sair que as anteriores sobre a morte de outros músicos. É que a morte do Zé Pedro é muito mais que a morte de um músico, para mim e para a generalidade dos melómanos rock portugueses.

Eu e o Zé Pedro não éramos propriamente amigos - no sentido literal do termo -, mas partilhámos experiências, trocámos copos de vodka, conversámos sobre música. Além disso, não deve haver um único português que não tenha alguma relação com uma música dos Xutos, algum refrão que lhe lembre alguém ou alguma melodia relacionada com um episódio de vida. É por isso que os Xutos atravessam gerações, os concertos estão cheios de pais que levam os filhos - e, muitas vezes, ao contrário.

Quaisquer elogios post-mortem são fúteis e desadequados. É por isso que a música fala por si. Esta não é uma mera colecção de canções. São algumas das minhas canções - quase privadas -, aquelas que me trazem recordações, que me fazem sempre lembrar alguém ou algum lugar. Tive de escolher 7 - só para não serem 6 nem 8, porque senão, seriam todas!

CONTA-ME HISTÓRIAS ("Cerco", 1985)

Agora que pousas a cabeça
Na almofada e respiras satisfeito
Quero o teu amor sem sentido nem proveito

Agora que respiras
Lentamente sigo a curva do teu peito
Procuro o segredo do teu cheiro

Juntos fomos correndo lado a lado
Juntos fomos sofrendo ter amado
Amas a vida
E eu amo-te a ti

Conta-me historias daquilo que eu não vi

Logo acordas
E pedes-me um cigarro que eu não fumo
Sonho planos do futuro

Logo juntas a tua roupa
E dizes que a vida está lá fora
Passou a minha hora
Passou a minha hora

Juntos fomos correndo lado a lado
Juntos fomos sofrendo ter amado
Amas a vida
E eu amo-te a ti

Conta-me historias daquilo que eu não vi

PENSÃO ("Circo de Feras", 1987)

E tu, tu estás tão perto
E eu, eu estou tão perto
E nada, nos pode parar
Pois já chegamos onde queríamos chegar

De qualquer maneira
Tiro-te daqui.
Daqui para outro lado
Onde possa mexer em ti

E os olhos , procuram os olhos
E a boca, pede a outra boca
E nada, nos pode parar
Pois já chegaram onde queriam chegar
Pois já chegaram onde queriam chegar

De qualquer maneira
Tiro-te daqui.
Daqui para outro lado
Onde possa mexer em ti

Num quarto alugado
Numa pensão qualquer
Vais ter de me dar
O que me andas a prometer

VIDA MALVADA ("Circo de Feras", 1987)

Adeus vida atinada
Dos horários e das bichas
E das gripes do inverno
E do suor do verão

Adeus vida atinada
Das mil maneiras de passar fome
Adeus às praias
Cheias de gente
E um beijo p'ra quem fica

Adeus vida atinada
Ter de dormir sete horas por dia
Ir para o trabalho e ainda é de noite
Sempre o mesmo a todas as horas

Adeus vida atinada
Das mil maneiras de passar fome
Adeus às praias
Cheias de gente
E um beijo p'ra quem fica

Mudar de roupa, saudar o cabelo
Dormir no carro, todo nu em pelo
Dizer que hoje o dia está perfeito
Pôr óculos escuros a torto e a direito
Pois hoje vou pegar na guitarra
É hoje que eu me faço à estrada

Olá ó vida malvada

Escorrega e desliza
Nessa estrada de vento
Sempre, sempre, sempre

Adeus às praias
Cheias de gente
E um beijo p'ra quem fica

QUEM É QUEM ("Xutos & Pontapés", 2009)

Pé ante pé na noite fechada
Fareja a presa a hiena esfomeada
Dos olhos escapa um brilho cruel
Matar a fome é o seu papel

O comboio de jeeps avança pelo trilho
Trazendo armas prontas fixas no tejadilho

Uma cor de sangue o sol derrama
Enquanto nasce
Enquanto nasce o horror
Na terra africana

Num fechar de olhos cercam a aldeia
Lobos à caça na sua alcateia
As gentes fogem ainda estremunhadas
Rapidamente são apanhadas

Não há quem lhes escape
Não há quem resista
São os Senhores da Guerra
Essa raça maldita
Procuram prazer num jogo mortal
Ficamos sem saber
Quem é o homem, quem é o animal

Quem é quem
Nesta selva sangrenta
Quem é quem
Neste dia violento
Quem é quem
Deixando um rasto com um toque de dor
Quem é quem
Por aqui passaram os filhos do ditador

Filhos sem pai de uma mãe esfomeada
A lei do mais forte é lhes sempre aplicada
As balas foram as suas primeiras letras
As facas do mato as suas canetas
Com elas escrevem uma história de terror
Com brasas, cobre e gritos de dor

Quem é quem
Pergunta a hiena
Prevendo o sangue
A correr nesta arena

Quem é quem
Nesta selva sangrenta
E a milícia de sangue sedenta
Quem é quem
Neste dia violento
Mulheres e crianças são o seu alimento
Quem é quem
Deixando um rasto com um toque de dor
Quem é quem
Por aqui passaram os filhos do ditador

Quem é quem

ESTA CIDADE ("Circo de Feras", 1987)

Quer eu queira quer não queira 
Esta cidade 
Há-de ser uma fronteira 
E a verdade 
Cada vez menos 
Cada vez menos 
Verdadeira 
Quer eu queira 
Quer não queira 
No meio desta liberdade 
Filhos da puta 
Sem razão 
E sem sentido 
No meio da rua 
Nua crua e bruta 
Eu luto sempre do outro lado da luta 
A polícia já tem o meu nome 
Minha foto está no ficheiro 
Porque eu não me rendo 
porque eu não me vendo 
Nem por ideais 
Nem por dinheiro 
E como eu sou e quero ser sempre assim 
Um rio que corre sem princípio nem fim 
O poder podre dos homens normais 
Está a tentar dar cabo de mim 
Cabo de mim

GRITOS MUDOS ("Gritos Mudos", 1990)


Neons vazios num excesso de consumo
Derramam cores pelas pedras do passeio
A cidade passa por nós adormecida
Esgotam-se as drogas p'ra sarar a grande ferida

Gritos mudos chamando a atenção
P'ra vida que se joga sem nenhuma razão

E o coração aperta-se e o estômago sobe à boca
Aquecem-nos os ouvidos com uma canção rouca
E o perigo é grande e a tensão enorme
Afinam-se os nervos até que tudo acorde

Gritos mudos chamando a atenção
P'ra vida que se joga sem nenhuma razão

E a noite avança, e esgotam-se as forças
Secam como o vinho que enchia as taças
E pára-se o carro num baldio qualquer
E juntam-se as bocas até morrer

Gritos mudos chamando a atenção
P'ra vida que se joga com toda a razão

HÁS-DE VER ("Dizer Não De Vez", 1992)

Palavras que se enrolam na língua
Uma timidez superlativa
Há coisas difíceis de dizer
Não vou ficar a olhar
Deixar o tempo passar
E ver o teu sorriso a desaparecer

Kilos de alegria
Montes de prazer
Há-de vir o dia
Em que te vou dizer

Não sou gago
Não me falta a vontade
Sei que te me dás
Essa liberdade
Mas há coisas difíceis de dizer

Vou ver se consigo
Dizer-te ao ouvido
Estas três palavras
Que trago comigo
Hás-de ver

Kilos de alegria
Montes de prazer
Há-de vir o dia
Em que te vou dizer

Lá estou eu outra vez a tremer
Com esta conversa pra fazer
Farto de calar
Farto de sofrer
Mas há coisas difíceis de dizer
Farto de sofrer
Farto de calar
Com todo o meu amor

Uma música por dia