sexta-feira, maio 11, 2018

UM RESTAURO DE PROFISSIONAIS

A Agente Vermelha: CRÉDITOS COMPLETOS

Há duas premissas que devem, desde já, ficar estabelecidas nesta pequena crónica: a primeira, diz respeito à obra de Jason Matthews, que nunca li, mas, tanto quanto sei, é extremamente complexa; a segunda, diz respeito a Jennifer Lawrence - a revolucionária Katniss Everdeen da série "The Hunger Games", a teimosa Ree de "Despojos de Inverno" ou a assustada Elissa de "A Casa do Fim da Rua". Por muito mau que qualquer filme possa ser, com ela no ecrã serão sempre duas horas de prazer, só por olhar.


Claro que aquela última parte é uma brincadeira, mas este vosso humilde escriba não é de ferro, até porque, verdade verdadinha, "Red Sparrow" é notavelmente interessante. Enquanto Francis Lawrence se tenta libertar das amarras de "The Hunger Games" - coisa que Peter Jackson, por exemplo, nunca conseguiu em relação a "O Senhor dos Aneis" -, Justin Haythe consegue um argumento, mesmo que adaptado, consistente e o grupo de actores, apesar de vários nomes sonantes do universo hollywoodesco, está aqui de corpo e alma, representado o seu papel de forma convincente.


As guerras de espiões entre russos e americanos são antigas e a politica actual volta a alimentar casos de guerra fria com novos interesses e mistérios renovados. "Red Sparrow" não deixa de navegar na onda de suspeitas e medos que alimentam as noticias de hoje, escarrapachadas em todas as primeiras páginas dos jornais e aberturas de noticiários de TV: Dominika Egorova (Jennifer Lawrence), bailarina russa, é contratada pelos serviços secretos da Rússia, para seduzir e apoderar-se dos segredos do agente da CIA, Nate Nash (Joel Edgerton). Tão simples como isto.


O que surpreende no filme, é como Francis Lawrence, recorrendo a um argumentista engenhoso e a um conjunto de actores excelente, faz uma obra interessante e apelativa, com ritmo e suspense, a partir de uma premissa já mais que gasta no cinema e na literatura. O que poderia ser um continuado bocejo, um tortuoso déjà vu, parece novo ou devidamente restaurado. O espectador embrenha-se e segue interessado toda a acção, como se estivesse perante um original luminoso.


E a verdade é que tudo isto é conseguido sem serem precisas grandes correrias, bastando uma velocidade de cruzeiro aparentemente lenta, mas que, por isso mesmo, deixa que as pequenas surpresas rebentem na cara da plateia com mais estrondo. Como um carro de alta potência que, mesmo em marcha lenta, exibe todas as potencialidades que parece esconder. Quando a acção de "Red Sparrow" dá a impressão de estar a estagnar, Francis Lawrence mete uma mudança abaixo e dispara sem que a concorrência consiga segura-lo. Depois volta a (quase) parar para deleite do condutor, que deixou os adversários lá atrás, a uma distância considerável.


Sim, é verdade que eu, pessoalmente, tenho um fraquinho por Jennifer Lawrence - assumo -, mas não é por isso que "Red Sparrow" vale a pena, até porque, como se lembram, não tive problema em torcer o nariz a "Joy" lá para os idos 2016. Não. Este filme é uma versão restaurada das velhas histórias de espiões, das antigas guerras entre russos e americanos, só que é um restauro feito por profissionais de elevadíssima competência. Uma obra nova - ou renovada, se preferirem - a partir de cacos velhos.

terça-feira, maio 08, 2018

PARA LÁ DO MURO

As Vidas dos Outros: CRÉDITOS COMPLETOS

O muro que dividiu Berlim até 1989 é uma excelente metáfora para este "Das Leben der Anderen", um filme com 12 anos, que não cabe na luta de bilheteiras das produções Nexflix e Amazon. Esta é uma obra que joga noutro campeonato, que se cola à pele do espectador para toda a vida, vinda das mãos de Florian Henckel von Donnersmarck, que depois de aliciado por Hollywood, nos trouxe um dos mais interessantes (não necessariamente "melhores") "tiro neles" dos últimos tempos: "O Turista", com Angelina Jolie e Johnny Depp.


Vencedor do Óscar para melhor filme estrangeiro e nomeado para os Globos de Ouro em 2007 e vencedor do Prémio de Cinema Europeu em 2006, "Das Leben der Anderen" coloca o espectador na posição de espreitar pela fechadura da intimidade dos outros, como uma criança, como "O Vigilante" de Francis Ford Coppola ou "Blow Out - Explosão" de Brian De Palma só que enquanto Harry, do primeiro, e Jack, do segundo, tinham um propósito concreto, o agente Wiesler (Ulrich Mühe) de Donnersmarck deixa-se envolver numa teia de voyerismo (quase) sem sentido.


Na Alemanha Democrática de 1984, o escritor Georg Dreyman (Sebastian Koch) é alvo de vigilância discreta mas apertada da Stasi. Essa vigilância, liderada pelo competente agente Gerd Wiesler, vai acabar por obcecar o investigador, não necessariamente pelos motivos inicialmente previstos, mas porque alguém sem vida se intrometeu na vida de alguém com existência - se é que me faço perceber...


Embora Florian Henckel von Donnersmarck não renuncie a expor os métodos e os podres da velha Alemanha comunista, "Das Leben der Anderen" não é obviamente um filme politico, no sentido em que o regime serve apenas de pano de fundo para explicar o fundamento da acção. Esta é uma obra existencialista, que põe em confronto a vida de duas pessoas e é nesse sentido que toda a trama se desenrola. A obsessão do Partido por Dreyman não se deve às suas actividades subversivas, mas por o encarar como um rival entre a bela Christa-Maria Sieland (Martina Gedeck).


"Das Leben der Anderen" é ao mesmo tempo feroz e glamoroso, negro e luminoso, feliz e infeliz. Uma experiência que se pode contrapor ao sorridente "Adeus, Lenin!" de Wolfgang Becker. Será sentimentalista? Será humanista? Seja como for, é uma luz ao fundo do túnel, no sentido em que, mesmo sob os regimes mais rigorosos, o mais tecnocrata dos cidadãos pode revelar pequenas centelhas de rebelião e emocionar-se com um sussurro de prazer.

segunda-feira, maio 07, 2018

O "FILME NOIR" TEM FUTURO?

CRÉDITOS COMPLETOS

"Anon" é um filme desconcertante em (quase) todos os sentidos: a história está mais que vista (vem de "Admirável Mundo Novo" de H. G. Wells e, acima de tudo, de "1984" de George Orwell); é nitidamente um "série B", de orçamento limitado e sem recursos para efeitos especiais e outros subterfúgios; já foi filmada inúmeras vezes (de "Relatório Minoritário" à série de TV "Sob Suspeita") e, no entanto, o realizador Andrew Niccol e a sua equipa de actores e técnicos, apresenta um produto interessante, um "filme negro" de ficção cientifica que tem o espectador na mão do principio ao fim, bem construído, bem dirigido, bem interpretado.

Num mundo cinzento, com colorido apenas ocasional, onde tudo está devidamente catalogado e identificado, o detective Sal Frieland (Clive Owen) é confrontado com uma série de crimes cometidos por uma mulher não identificada, interpretada por Amanda Seyfried, uma falha no sistema que irá provocar um terramoto numa sociedade onde tudo está etiquetado e devidamente colocado no seu lugar.


E se contado assim, nada parece realmente original, a verdade é que o filme tem um ritmo muito próprio e uma história desenrolada com desenvoltura - apesar de sem pressas, porque não é da acção e da velocidade que o filme é feito. Se é verdade que "Anon" não é uma obra prima do cinema, não irá para a lista dos filmes da vida de ninguém, também é verdade que são duas horas de entretenimento, feitas não só a pensar na bilheteira, mas acima de tudo a pensar em divertimento de qualidade.


"Anon" é mais que uma tarde bem passada no cinema. É um filme interessante, que merece ser visto com atenção. Recupera o sentido do termo "femme fatale" e, apesar de ser nitidamente passado em ambiente de ficção cientifica, é também o que já se chamou "filme negro", é um thriller muito bem construído, que, apesar de não fazer do mistério a sua principal arma, tem suspense e mantém a plateia atenta ao ecrã com facilidade.


Clive Owen e Amanda Seyfried fazem mais do que lhes compete. Empenham-se e são dirigidos com mão segura por Andrew Niccol - que não é propriamente um ignorante na arte da realização e da escrita de argumentos: idealizou, por exemplo, o "Terminal de Aeroporto" para Steven Spielberg e fez "Nómada" ou "Gattaca". O principal problema de "Anon" será as inúmeras referencias que muitos espectadores irão encontrar, remetendo-os a obras anteriores, cinematográficas ou não.


Não sendo o mais original dos filmes, é, apesar de tudo, puro entretenimento de qualidade, pelo menos para aqueles espectadores que não se deixarem dominar por todas as pequenas coisas que irão encontrar a cada passo. Quem se deixar levar sem cinto de segurança, vai ter um passeio bem divertido, um thriller "B" sem preconceitos.

terça-feira, maio 01, 2018

SABOREAR DEVAGAR

CRÉDITOS COMPLETOS

"Automata" não é para quem tem pressas, tem de ser saboreado devagar, como aqueles caramelos que se vão derretendo na boca a pouco e pouco, residindo precisamente aí o supremo do divertimento. Sem que a história seja particularmente original, vive dum argumento consistente, que se vai desenrolando em crescendo, duma realização segura, mesmo que vinda das mãos de um quase novato, e de várias interpretações brilhantes, com Antonio Banderas á cabeça, num daqueles papeis "à Almodóvar", onde a exuberância é secundária, mas a consistência é fundamental.


Passado num ambiente pós-apocalíptico muito próximo de "Blade Runner", "Automata" conta a história da descida ao inferno de Jacq Vaucan (Antonio Banderas), perito de seguros, especializado em robôs que violam o protocolo de não se poderem alterar a si próprios. O estranho caso de um policia que abateu uma das máquinas, alegando que ela se estava a auto-modificar, vai levar o investigador descobrir segredos que deviam ficar ocultos.


Se têm filhos pequenos e gostaram da animação "Wall-E", podem encarar este "Automata" como a versão para adultos do filme da Pixar, só que mais negro, deprimente e duma violência de cortar a respiração, não apenas visual mas - e principalmente - pressentida. Jacq Vaucan está emocionalmente à beira do abismo quando a aventura começa e, de repente, arrasta consigo toda a plateia que fica a pairar no "nada" e em queda livre para as labaredas do Hades.


Escrito por três (quase) desconhecidos, o realizador Gabe Ibáñez, juntamente com Igor Legarreta e Javier Donate, "Automata" podia ter seguido o caminho mais fácil, mas apesar de todas as referências óbvias, decidiu que uma história deve contar-se ao seu ritmo próprio e que todos os pormenores contam. Por isso desenrola-se à sua velocidade muito particular, demorando o tempo que é necessário, sem pressas e sem acelerações. É como é e como tem de ser ou, como diria o ditador António Oliveira Salazar: "está bem assim e não podia ser de outra maneira".


Não restam dúvidas que existem aqui inúmeras incursões a outros elementos conhecidos: Isaac Asimov, Philip K. Dick e "Blade Runner", até mesmo Spielberg e o seu "AI", no entanto nada disso altera um milímetro da consistência e do brilhantismo de "Automata", basta que o espectador deixe o filme derreter-se devagar, se deixe arrastar para o abismo e, quando estiver mesmo à beira do precipício, decida saltar. É a queda no vazio da própria existência.