quinta-feira, janeiro 18, 2018

O SACRIFÍCIO DE IFIGÉNIA

Recanto das Letras - Ensaios: "Ifigénia" de Eurípides (trad. Fabio Renato Villela)

O Sacrifício de Um Cervo Sagrado: CRÉDITOS COMPLETOS

Desde "The Lobster" que eu sou um fanático e obsessivo seguidor de Yorgos Lanthimos e do seu co-argumentista Efthymis Filippou. Este "The Killing of a Sacred Deer" não foge ao universo estranho e inexplicável da equipa e, como de costume, não é um filme que toda a gente vai gostar, embora os seguidores do realizador grego já estejam habituados a viver num mundo que (parece) só eles conseguem compreender.


Comecemos pelo principio: a morte do veado é uma referência à tragédia "Ifigénia" de Eurípides, na qual o deus Agamemnon se vê obrigado a sacrificar a sua filha mais velha, por ter morto o veado favorito de Artemis. E embora uma espingarda de caça venha a desempenhar um papel central neste filme, não é de tiros e acção que estamos a falar, muito pelo contrário! A metáfora é muito mais próxima do mecanicismo cartesiano: toda a acção inicia uma reacção.


O cirurgião cardíaco Steven (Colin Farrell), vê-se envolvido numa dramática decisão, devido à (ou "a partir da") sua relação com Martin (Barry Keoghan), um jovem que ele decide (ou "parece") proteger e introduzir na sua família. E embora a história se possa resumir, sem spoilers, a estas duas personagens, elas estão longe de ser a parte central do drama, onde brilha mais alto a luminosa Nicole Kidman (Anna Murphy, a esposa de Steven), ou os filhos Kim e Bob (Raffey Cassidy e Sunny Suljic).


O filme nunca ganha uma velocidade estonteante, mas começa realmente devagar. No entanto, desde os primeiros momentos que o espectador sente uma certa comichão cada vez que Martin é introduzido na cena. Para além disso, embora o núcleo familiar dos Murphy pareça estável, desde muito cedo percebemos que algo pode explodir a todo o momento, com cenas de amor consensual mas estranhas e relações paternas distantes, frias e impessoais. Tudo parece no lugar, mas nada encaixa no sitio que deve estar... Se é que me faço entender...


Yorgos Lanthimos diverte-se a guiar a plateia por uma estrada que nunca sabemos onde vai dar, introduzindo constantemente reviravoltas, revelações e segundos-sentidos. Como um cruzamento sem setas a indicar o caminho, incluindo os diálogos dos personagens, repletos de sugestões indirectas, que obrigam o espectador a estar constantemente a ler nas entre-linhas. E, sejamos claros, quer Colin Farrell, quer Nicole Kidman, são absolutamente demolidores a desempenhar estes papeis.


Quando são reveladas verdades horríveis, elas parecem recitadas como os versos de uma tragédia grega, parecendo uma confissão para redimir pecados. Cada espectador irá ter a sua própria visão deste drama bizarro e pesado. Eu foi passando de incomodado a assustado, de horripilado a confuso, de surpreendido a enjoado... Certamente que Lanthimos e Filippou se teriam rido e divertido muito comigo!

quarta-feira, janeiro 17, 2018

TOMEM LÁ O CHEQUE E DESPACHEM-SE!...

Ameaça Global: CRÉDITOS COMPLETOS

Imaginem o director dum estúdio qualquer (neste caso especifico o Skydance) a dizer para o grupo dos piores empregados que lá tem, que "este fim de semana tenho lá o meu filho de 12 anos em casa, façam-me aí um filme com naves e explosões para o entreter durante hora e meia. Tomem lá 120 milhões para uns actores conhecidos que andem por aí sem fazer nada e vão ao trabalho!". Os técnicos (passe o exagero!) olharam uns para os outros, alinharam uns diálogos numa teoria da conspiração, meteram umas cenas com space-shuttles e fizeram o pior que sabiam para entreter miúdos que os pais não querem a chatear pela casa. Isto é "Geostorm"!


Há filmes que nunca deviam ser feitos, sob pena de serem considerados crimes contra a humanidade e darem direito e levar ao Tribunal de Haia toda a equipa envolvida. É o caso deste, tão ridículo que envergonha até o espectador, só por se ter decidido a comprar o bilhete e a sentar-se na sala. Desde o título à interpretação, dos diálogos ao enredo, tudo em "Geostorm" é um falhanço completo: conversas de fazer corar as redacções das crianças da 4ª classe - salvam-se meia-dúzia de piadas bem metidas, o que é muito pouco para quase duas horas de filme -, efeitos especiais e cenas de acção de matar de riso os Disney dos anos 30, um argumento que deve ter sido escrito a partir duma conta de super-mercado...


E o pior é que até conta no elenco com algumas caras interessantes como Ed Harris ou Andy Garcia, que ainda hoje devem estar a pensar como é que foram ali parar, de onde é que os foram buscar para integrar esta história disparatada de um americano maluco (não, não se chama Trump!...) que, para dominar o mundo - ou algo parecido -, decide colocar um vírus informático no grupo de satélites colocados no espaço para controlar as alterações climáticas, que estavam a destruir o planeta. O problema é que, quando começam a desenvolver a coisa, o realizador e co-argumentista Dean Develin, juntamente com o co-argumentista Paul Guyot, metem de tal forma os pés pelas mãos, que é óbvio que não sabem o que querem nem como fazer o que não sabem que sabem que não sabem. Percebem?...


"Geostrom" deve ser o pior filme de 2017, senão um dos piores do século XXI ou mesmo de todos os tempos. Talvez até sirva para entreter crianças de 10 anos, para elas não andarem a correr pela casa a chatear, mas mesmo isso é duvidoso que consiga, se elas forem minimamente inteligentes e tiverem um mínimo de gosto por cinema. Talvez se riam das explosões, se entusiasmem com as cidades inundadas, mas o mais provável é encararem o filme como uma comédia. Não é má solução para manter bebés ocupados, mas é uma péssima opção para gastar dinheiro a ir ao cinema.

quarta-feira, janeiro 10, 2018

AS VANTAGENS E AS DESVANTAGENS DA TV

Amor e Justiça: CRÉDITOS COMPLETOS

Esta não é a primeira vez que falo aqui de filmes que caiem do céu através da TV. Ver cinema na televisão tem vantagens e desvantagens, sendo a primeira de todas o total controlo da minha vontade. Ao contrário da sala de cinema, na sala da casa eu tenho o comando, só não mudo se não quiser. As desvantagens, pelo contrário, são inúmeras: a distracção - um cigarro, a conversa com a companhia, a ida ao frigorífico para uma cerveja, o telefone ou o vizinho que bate à porta. "Freeheld", no entanto, manteve-se o centro de todas as atenções e ainda bem.


A detective Laurel Hester (Julianne Moore) é diagnosticada com cancro, restando-lhe pouco tempo de vida, pelo que decide entregar a sua pensão à companheira, Stacie Andree (Ellen Page), mas o que seria uma opção normal em famílias tradicionais, torna-se um jogo politico devido à ausência de leis que regulamentem o casamento entre casais do mesmo sexo no estado de New Jersey. "Freeheld" é, portanto, um filme a puxar à lágrima, entre um drama familiar e os bastidores da burocracia.


Um filme que começa por parecer um policial sem sabor, passa depois por parecer um romance revolucionário sobre homossexualidade feminina, acaba por ser realmente um grito de revolta pela igualdade e pela justiça, sem hastear bandeiras hipócritas nem moralismos sem sentido. Apenas uma história sobre o amor e sobre os direitos humanos com base nas relações familiares, sejam quais forem as opções sexuais individuais. Não é muito e "Freeheld" não vai muito longe. É quase um "filme de tribunal", feito de forma ligeira mas sobre assuntos que tocam a todos.


A luta de Laurel e Stacie é muito mais colectiva que particular e o realizador Peter Sollet sabe bem fugir a estereótipos e falsas moralidades. O problema do casal poderia ser entre duas pessoas heterossexuais, que por decisão própria decidissem não casar, mas apenas viver juntas. É por isso que a homossexualidade dos personagens centrais é tão secundaria como o facto do filme começar por ser uma simples investigação policial. A partir de certa altura Michael Shannon (detective Dane Wells) toma as rédeas da acção e domina o ecrã, passando Laurel e Stacie a funcionarem quase como secundárias.


Quem já me conhece, pode dizer que gostei de "Freeheld" por causa das actrizes principais que admiro, mas garanto que é muito mais, até porque o filme exibe um elenco luxuoso e competente. Gostei do filme porque tem tudo o que é preciso para ser um final de dia com bom cinema. É um daqueles filmes que, provavelmente, não voltarei a ver, mas que não lamento nem um segundo do tempo que estive a ver desta vez.

segunda-feira, janeiro 08, 2018

TER ASAS E NÃO VOAR

O Boneco de Neve: CRÉDITOS COMPLETOS

Pelo que tenho percebido, "The Snowman" tem duas perspectivas para ser avaliado: há aqueles que conhecem a obra de Joe Nesbo e que criticam o filme por ser mais um policial que um filme de terror - que, segundo parece, é a matiz do livro -, por ter renunciado à violência explicita e optar por um registo mais misterioso que sanguinário, e depois os que, não conhecendo a história original - nos quais me incluo -, gostam do filme só porque é um policial competente, sem rasgos de genialidade, mas bastante bem conseguido.


O principal problema de "The Snowman" é a falta de simplicidade, os constantes recuos e avanços para explicar a história, que tornam a acção confusa e desnecessariamente emaranhada. Tentando dar-se ares de inteligente, acaba por perder demasiado tempo com o acessório esquecendo a trama central. Isso acaba por fazer com que o filme - sem dúvida competente - não descole do chão, quando percebemos que tem asas para voar muito alto.


Ao investigar o desaparecimento duma mulher, o detective Harry Hole (Michael Fassbender) depara-se com um complicado caso de um serial-killer e, para o solucionar, vai contar com a ajuda da competentíssima companheira Katerine Bratt (Rebecca Fergunson). Para contar esta história, que poderia descambar num simples espalha tripas, Tomas Alfredson dá voltas para complicar, tentando desesperadamente criar um policial emaranhado, onde poderia estar apenas um mistério simples e directo.


Não há qualquer problema em admitir que "The Snowman" é um filme competente - vamos deixar o livro de lado, também porque não conheço a história que foi um best-seller em 2007 -, mas há menos problema ainda em admitir que deixa um vazio de possibilidades, naquele sentido em que o espectador tem sempre a sensação que está perante um produto de qualidade, mas que no fim acaba por saber a pizza de micro-ondas, muito por culpa do próprio cozinheiro.



"The Snowman" é confuso porque Tomas Alfredson baralha o que podia ser simples. Irá agradar a quem gosta de histórias que vão colando peças ao longo do caminho e que têm reviravoltas finais, mas vai deixar um sabor amargo porque, com tantas complicações e para acabar dentro do orçamento, despacha um final algo atabalhoado e infantil. Uma tarde entretida mas não esperem muito. Promete mais do que realmente oferece.

sexta-feira, janeiro 05, 2018

NEGRO, MISTERIOSO E SOLITÁRIO: O DESESPERO

CRÉDITOS COMPLETOS

Tenho a confessar duas coisas: a primeira é que só conheci Philip K. Dick depois de "Blade Runner" de 1982 e devo confessar que "Do androids dream of electric sheep?" nem é dos meus livros favoritos do autor. Além disso, Dick - provavelmente junto com Ray Bradbury - deve ser o mais psicadélico dos autores clássicos de f.c., o que faz dos seus livros uma experiência única, tanto no domínio da literatura em geral, quer no domínio da antecipação cientifica em particular;


A segunda, é que fui para este "Blade Runner 2049" com um pé atrás. O original de Ridley Scott é considerado por muita gente como o melhor filme de ficção cientifica de sempre e, para outros, é mesmo o melhor das suas vidas. Eu não vou tão longe, mas é certamente um filme radical na cinematografia de uma vida. Fazer uma continuação de uma obra-prima é como se alguém quisesse fazer um novo Guernica ou uma nova Capela Sistina. Por isso, Denis Villeneuve tinha nas mãos uma granada prestes a explodir.


Neste ponto, convém fazer um "à parte" às novas gerações: a visualização do original de 1982, não sendo fundamental para compreender este "Blade Runner 2049", pode ser importante para compreender o envolvimento emocional e o passado. O filme de Denis Villeneuve é completamente independente do inicial e dá-nos suficiente informação para perceber o detective "K" (Ryan Gosling, ainda em glória pelo sucesso de "La La Land"), mas não para nos embrenharmos no drama profundo de Ridley Scott, que é muito mais que um romance de ficção cientifica.


E agora, vamos ao que interessa: "Blade Runner 2049" é um filme negro e misterioso, que deixará o espectador num deserto de desespero, que, como sabemos, é duma solidão mortal. É uma aventura num mundo sem esperança, onde a única solução para o amor é um abismo escuro, um túnel longo sem luz ao fundo. No final, a plateia ficará esmagada pelas ideias que andarão a rodopiar na sua cabeça. É por isso que é uma obra fundamental. Quem não vir este filme, há-de arrepender-se para toda a eternidade.


O filme começa tímido, como se fosse uma simples aventura no futuro, mas temos de reconhecer que a equipa Denis Villeneuve se deve ter sentido como Jodi Coll, quando foi incumbido de terminar a Sagrada Família de Barcelona. De repente, vê-se com uma tarefa titânica nas mãos, para além de todos os olhos postos em si - o falhanço não é opção, embora todos saibamos como a máquina de Wollywood tritura sem piedade as suas obras mais emblemáticas, rendida aos dólares e ao espectáculo, mais que ao sentimento de paternidade emocional.


O detective "K", um "replicant" (uma espécie hiper-avançada de androide) cuja tarefa é eliminar "replicants" de gerações anteriores, busca a solução para o mistério do desaparecimento de uma criança, o que o vai levar a um labirinto existencial - sim, os "replicants" têm "existência" tal como a entendemos em Kierkgaard, ou Heidegger, ou Sarte. Ryan Gosling vai muito bem na pele do personagem perdido entre o que é, o que sabe que é e o que deseja ser, e Denis Villeneuve cria um mundo devastado e sem futuro, onde se movimentam personagens devastados e sem futuro. Tudo se combina para um drama sem saída.


Apesar de todas as excelentes criticas, "Blade Runner 2049" foi um flop, tal como o original de Ridley Scott tinha sido na altura da estreia. Além disso, num ano com muita e boa ficção-cientifica - "Gohst in the Shell", "Valerian e a Cidade dos Mil Planetas", o último Wolverine de Hugh Jackman, "Bokeh", enfim, uma lista extensa  -, um filme depressivo, apesar de inteligente, vai demorar tempo a digerir. O que o futuro reserva a esta obra é uma incógnita, tal como o foi para o primeiro "Blade Runner" - que, com pezinhos de lã, acabou por se tornar um icon do cinema.


A fasquia para "Blade Runner 2049" estava muito alta e, no entanto, os argumentistas Hampton Fancher e Michael Green assumem os riscos sem medo nem pudor, enquanto Denis Villeneuve dirige um conjunto de actores exemplarmente empenhados. A narrativa leva o espectador por um mundo devastado, sem futuro e sem esperança, tão deprimido com o próprio "K". Todas as ansiedades existenciais possíveis atravessam o filme de forma esmagadora, como o martelo de Nietzsche, que durante duas horas e meia insiste em assombrar o cérebro da plateia.


Só mais um aviso: esqueçam os trailers que vão ver por aí. "Blade Runner 2049" está longe de ser uma aventurazinha de ficção científica. Este filme é uma obra negra e misteriosa, sobre um policia solitário e todas as crises existenciais que a busca por uma criança desaparecida lhe vão provocar. Pode parecer pouco, mas no final, quando estiverem a sair da sala, aquela estranha sensação de melancolia que vai imperar na vossa cabeça, não é fruto do acaso. É a consequência do cinema que vale a pena ser visto.