domingo, abril 26, 2020

DE SURPRESA EM SURPRESA

CRÉDITOS COMPLETOS


A certa altura, “Stray Dolls” parece não ser mais que um “Thelma & Louise” em versão “B”., mas  aí já o  espectador percebeu que está a ver um excelente thriller policial, com suspense, ritmo e drama. De surpresa em surpresa, estamos perante a melhor prova que não é preciso milhões para fazer um grande filme.


Como primeira obra, Sonejuhi Sinha consegue aquilo a que se pode chamar  um tiro na mouche. Sem compromissos com o mainstream nem com os grandes estúdios, o realizador dá largas a um certo amor por referências cinematográficas, desde as Cataratas do Niágara às duas heroínas em fuga, estilizando um conjunto de clichés de trillers e dramas.


Riz (Gaetanjali Thapa) é uma emigrante ilegal nos Estados Unidos, que trabalha num motel de beira da estrada, onde partilha quarto com Dallas (Olivia DeJonge), uma viciada, perita em esquemas e subterfúgios. Entre ambas vai-se desenvolver um plano para devolver a liberdade à primeira e alguma dignidade á segunda. Como seria de prever, nem tudo corre como planeado e ambas vão entrar numa espiral de crimes e violência.


O filme tem muitos sub-temas no interior, desde a emigração ilegal, a  prostituição, o trafico de drogas, todos eles tendo um papel relevante na acção. Afinal, é por motivos diferentes que Riz e Dallas se envolvem na aventura que planearam. Mas o centro do turbilhão é mesmo um drama policial envolvente, dinâmico e interessante.


Sonejuhi Sinha tem um excelente sentido do detalhe, sabe estar no interior e no exterior, sabe onde posicionar-se para que nada se perca na acção. Talvez devesse fugir a alguns pormenores demasiado vistos, mas não se poderia pedir muito mais à estreia. “Stray Dolls” é um  policial  puro e duro, com aquele sentido de humor muito ati-social – o caso da foto de João Paulo II na recepção, ou o poster de Dolly Parton no quarto de Dallas – que fará as delicias dos mais atentos.


Não podemos negar que este lado negro do “sonho americano” já foi filmado vezes sem conta,  mas “Stray Dolls” encontra sem dificuldade o seu cantinho próprio no saturado tema central, mais que não seja, pela forma como valoriza e venera a obra cinematográfica anterior.  

sábado, abril 25, 2020

QUASE PERFEITO

Encontros: CRÉDITOS COMPLETOS


Podia ser o romance perfeito, mas “Deux Moi” tem um pequeno problema que é a falta de ritmo. Move-se em círculos lentos, colocando o espectador numa situação estranha, sabendo, ao fim de 15 ou 20 minutos, onde tudo vai acabar, mas andando demasiado em solavancos que emperram o desenrolar da história. Esta é a pior parte. Agora vamos ao resto.


Rémy (François Civil) e Mélanie (Ana Girardot) vivem em Paris  em prédios contíguos. Não se conhecem embora se cruzem de vez em quando na mercearia ou na farmácia – onde vão, ele por dormir de menos, ela por dormir demais; ele alheio e desinteressado devido a um trabalho de que não gosta, ela deprimida devido ao fim dum relacionamento.


“Deux Mois” segue ambos nas suas deambulações desinteressadas através de diálogos inteligentes e interpretações competentes . O filme tem humor – não sendo exactamente uma comédia – e levanta o problema do alheamento provocado pelas cidades modernas, impessoais, onde a solidão impera, mesmo que superpovoadas.


O uso  da psicoterapia para ir revelando o caracter dos personagens pode parecer um cliché demasiado visto, mas o realizador Cédric Klapisch, juntamente com o co-argumentista Santiago Amigorena, conseguem, mesmo nesses momentos, criar algo original e o espectador não deixa de se divertir com as situações desenvolvidas.


“Deux Mois” é um filme extremamente competente em todos os sentidos. Um pouco melhor gestão do ritmo e seria um romance perfeito, mesmo que aqui e ali alguns “deja vu”  possam distrair o espectador.  É, no entanto, muito mais uma história sobre a solidão que sobre o amor, muito mais sobre desencontros que sobre encontros.


Este é um daqueles filmes que chamará o espectador a uma segunda visualização, porque acaba com aquela sensação que houve coisas que ficaram para trás. A melhor premissa do filme é que não se pode amar alguém sem nos amarmos a nós próprios  primeiro, a pior, já explorada até á exaustão, é que a vida urbana de hoje nos arrasta para uma solidão infinita.

sexta-feira, abril 24, 2020

ZOMBIES A 200 À HORA

CRÉDITOS COMPLETOS


A filmografia Sul Coreana é o paraíso para os amantes do terror, principalmente quando se trata de gore e sangue a correr pelas paredes.  Além disso,o realizador  Sang-ho Yeon  parece ser um profundo conhecedor da tradição de George A. Romero e outros especialistas do assunto, por isso, este “Train ToBusan” é um filme de cortar a respiração, com a acção a desenrolar-se no ecrã à própria velocidade dum TGV.


Sem tempos mortos, sem pausas para recuperar o folego, sem deixar o espectador sossegado por um minuto que seja , “Train To Busan” desenrola-se a uma velocidade de deixar qualquer aspirante a Ayrton Senna sem descanso, mesmo que não seja mais que  um filme de zombies, puro e simples, com mortos-vivos a rasgar gargantas de gente inocente e desprevenida. Só isso.


Seok-woo (Yoo Gong) é um pai ausente que tem, contra vontade, de levar a filha Soo-na (Su-na Kim) de Seul a Busan e para isso apanha o TGV.  Esse comboio acaba por ser invadido por um grupo de zombies, transformando a viagem num inferno de morte e sobrevivência, onde se vão cruzando personagens com diferentes níveis de moralidade, por quem a plateia vai ganhando também diferentes níveis de simpatia.


“Train To Busan” tem tanto de “The Host” como de “A Noite dos Mortos-Vivos” e Sang-ho Yeon não se coíbe de roubar tudo o que precisa a ambos e a outros como “World War Z” ou “O Renascer dos Mortos”, apenas como exemplo, só que este filme é bastante mais rápido que o primeiro e bastante mais assustador que o segundo, deixando-os para trás em todos os sentidos.


É verdade que o filme abranda um pouco ao fim de uma hora de elevada velocidade, mas depois volta a acelerar para um final simplesmente brilhante. Quaisquer que sejam as referências que possam ir buscar à vossa memória, de filmes com comboios ou com zombies, se são aquela espécie de pessoas que não passam sem um bom horror e  gore, então, não há como poderem ignorar este “Train To Busan”

quarta-feira, abril 15, 2020

APENAS MAIS UM, MAS ISSO BASTA

Um Dia de Chuva em Nova Iorque: CRÉDITOS COMPLETOS


Podia passar páginas a explicar a minha admiração pelos filmes de Woody Allen, mesmo quando ele nos apresenta uma obra menor – e apresenta muitas vezes. Aos 85 anos, continua a escrever e realizar uma média de um filme por ano, pelo que não se poderia esperar uma produção de obras-primas como contas de supermercado. Este “A Rainy Day In New York é isso mesmo: mais um Woody Allen, o que, só por si, para mim, quer dizer muito.


Woody Allen sabe como ninguém escolher actores que consigam desempenhar os seus papeis psicóticos e deprimentes. “A Rainy Day In New York” tem um conjunto de interpretes, que representam o melhor de cada geração, mesmo considerando a intromissão de Selena Gomez que, diga-se desde já, não se sai nada mal.


O resto, é o costume: diálogos intelectualizados, debitados à velocidade da luz, que obrigam o espectador a possuir uma certa bagagem cultural para não se perder no meio das referências a realizadores, pintores, filósofos, escritores e doenças, claro – o grande amor do realizador, principalmente as do foro psiquiátrico e psicanalítico.


Gatsby (Timothée Chalamet), estudante de não se sabe bem o quê, mas grande jogador de poker, e Ashleigh (Elle Fanning), estudante de jornalismo, são um casal de jovens que aproveita o facto de ela precisar de ir a Nova York entrevistar um estranho realizador para o jornal da universidade, para passar um fim-de-semana romântico, entre jantares em restaurantes caros e visitas a museus. Este fim-de-semana vai envolve-los em aventuras imprevistas e transportá-los a novas experiências, que os farão descobrir-se de novo e perceber o seu relacionamento,


O que mais salta à vista na forma como cada um desempenha o seu papel , é a transparência com que ambos interiorizam os personagens que se incumbiram de interpretar. Tanto Timothée Chalamet como Elle Fanning  são absolutamente honestos nos seus papeis, sempre à vontade e convincentes. Depois, à volta de Gatsby e Ashleigh flutuam um conjunto de personagens, todos eles interessantes e nunca supérfluos.


É verdade que “A Rainy Day In New York” não passa de mais um Woody Allen, um entre mais de 50, diria eu. Mas, para mim, isso é muito e basta. Quem for á procura duma obra-prima, coisa que pode sair da cabeça do realizador a qualquer momento, não vai ficar muito entusiasmado; mas quem for à procura dum romance inteligente, bem construído e divertido, então está no sitio certo.

terça-feira, abril 14, 2020

O SER E A ESSÊNCIA

CRÉDITOS COMPLETOS
 

Na sua essência, "Aniara" é um poema de ficção-científica escrito pelo prémio Nóbel da literatura Hary Martinson. O filme "Aniara" interessou-me em especial, porque o próprio autor é co-escritor do argumento, o que demonstra alguma credibilidade do realizador Pella Kagerman em manter-se o mais perto possível da ideia original.


O Ser do filme - aquilo que se mostra ao olhar do espectador - é a história duma nave espacial que transporta pessoas da Terra - que se tornara inabitável - para Marte e que sofre um acidente que a desvia da rota. Na sua essência, é uma aventura de descoberta do lugar do homem no universo e de cada um na vida.


Na sua essência, "Aniara" apresenta uma terceira possibilidade para o futuro: nem a IA destrói a humanidade, nem a humanidade abdica da IA para se salvar. A estupidez humana fará com que a IA cometa suicídio por desespero - que, na verdade, é o significado mais próximo da palavra grega ἀνιαρός (ániarós).


No seu Ser, "Aniara" é um filme inteligente mas difícil, que fará muitos espectadores desistir a meio. Fazem mal, porque é uma daquelas obras que tem de ser vista até ao fim, para fazer sentido. Está tão distante das aventuras de George Lucas como da alucinação de Ridley Scott. É uma obra única, sem paralelo na filmografia do resto da Europa, muito menos do resto do mundo.


Na sua essência, "Aniara" está muito mais próximo de "Stalker" ou de "Solaris" (do original, de Andrey Tarkovski) que de "2001: Uma Odisseia no Espaço". É um filme que apela à reconsideração sobre o presente e onde ele nos levará no futuro que nos espera, que, segundo Hary Martinson e Pella Kagerman, não é lá muito brilhante.

quinta-feira, abril 09, 2020

ENTRE A RAZÃO E O CORAÇÃO


Dá Tempo ao Tempo: CRÉDITOS COMPLETOS

Todos os argumentos de Richard Curtis são como um apertado abraço ao nosso melhor amigo. Escreveu  “Quatro Casamentos e Um Funeral”, “Nothing Hill”, ou o primeiro “O Diário de Bridget Jones”, apenas como exemplo, e realizou o fantástico “O Amor Acontece”. Todos eles têm em comum uma coisa: a estranha capacidade de libertar um vírus do prazer que infecta o espectador.


Tudo o que vão dizer acerca deste “About Time” é verdade: nenhum pai é tão porreiro como o de Tim (Domhnail Gleeson), interpretado por Bill Nighy, nem nenhum casal pode ser tão feliz como Tim e Mary (Rachel McAdams). Mas este filme é para espectadores que se deixam levar mais pelo coração que pela razão. Funciona como se nós fossemos um gato a ronronar de prazer com as festinhas nas orelhas, deitados no colo do dono.


Depois, tem todo o rigor daquela filmografia inglesa, com os actores certos no lugar certo e um rigoroso “mise en scène”.  Apesar de, se olhado racionalmente, ser um desfilar de clichés das comédias românticas, o realizador e os intérpretes apelam muito mais ao coração da plateia, que se derrete enquanto as imagens ganham vida no ecrã.


Quando faz 21 anos, Tim é informado que os homens da sua família têm o estranho poder de viajar no tempo. Enquanto vai e vem, entre aventuras e desventuras, o que o jovem acaba por descobrir é que o verdadeiro valor do tempo é ser vivido tal como é. Nada mais. Apenas uma espécie de “O Feitiço do Tempo” à inglesa, só que sem a exuberância de Bill Murray nem a beleza estonteante de Andie MacDowell.


O brilhantismo duma estreia na realização como “O Amor Acontece” dificilmente seria igualada, muito menos ultrapassada. Mas este “About Time” fica a dever muito pouco ao primeiro, no que diz respeito à satisfação que o espectador vai sentido ao longo da hora e meia do filme. Está aqui tudo o que Richard Curtis costuma colocar nas suas histórias: um apelo infinito ao prazer de ver cinema, só porque sim, mesmo que tudo seja apenas mais uma comédia romântica.


Eu tenho um problema, que é apaixonar-me loucamente pelos filmes de Richard Curtis, pelo menos por todos os que fui citando ao longo desta crónica. Não quero saber que a minha cabeça me sussurre que tudo não passa de mais um romance de fantasias só possíveis no cinema, o meu coração obriga-me a ficar colado ao ecrã, derretido de prazer e satisfação. E, pela reacção da minha companhia no final, não sou o único!

sexta-feira, abril 03, 2020

MAIS PLATÃO, MENOS H. G. WELLS

O "anel de Giges", Platão, "A República", Livro II

O Homem Invisível: CRÉDITOS COMPLETOS

Quando, cerca de 450 anos antes de Cristo, Platão escreveu a alegoria do "anel de Giges" sobre o homem justo e bom, não imaginaria o campo que iria deixar para a ficção-científica e o fantástico dos autores posteriores, dos quais "O Homem Invísivel" de H. G. Well e "O Senhor dos Aneis" de J. R. R. Tolkien são apenas os mais mediáticos. Esse fascínio humano de poder não ser visto e praticar todas as acções que a sua imaginação ditasse, mantêm-se no nosso sub-consciente como um martelo.


A novela de H. G. Well já deu origem a inúmeros filmes, séries, curtas, produtos e sub-produtos, dos quais "O Homem Transparente" de 2000, com Kevin Bacon e Elisabeth Shue, talvez seja o mais conhecido, mas nem por isso o mais interessante. Pode agora ser uma boa altura para visitar "O Homem Invisível" de 1933, de James Whale, com Claude Rains e Gloria Stuart. É preciso, no entanto, acrescentar desde já, que este "The Ivisible Man" de 2020 não é apenas mais um e merece uma atenção cuidada.


Para começar, temos Elisabeth Moss (Cecilia Kass), a nova raínha de Hollywood, a fazer aquilo que melhor sabe: personagens intensos, credíveis e que conseguem meter o espectador na pele de quem está a representar. Depois, o argumento e a realização de Leigh Whannell - o escritor de "Saw", por exemplo -, que vai beber a Hitchcock o suspense de nos fazer medo do que não vemos, do que nem sequer sabemos se está lá.


A história deste "The Invisible Man" é muito contemporânea e centra-se no problema da violência doméstica e das mulheres abusadas e agredidas pelos maridos - muitos irão lembrar-se do brilhante "Dormindo com o Inimigo" de 1991, com Julia Roberts e Patrik Bergin. A interpretação de Elisabeth Moss faz com que a Cecilia do filme nos entre pelo cérebro dentro, provoca-nos medo e coloca-nos na pele da(s) vítima(s). O espectador é incapaz de tirar os olhos do ecrã, estando sujeito a ser atacado por alguém que nunca está (fisícamente) visível, mas presente de forma mais agressiva e ameçadora. A sua auência ao olhar é precisamente o nosso maior terror.


Para além do excelente desempenho da acfriz principal, Leigh Whammell consegue criar empatia entre o espectador e os restantes personagens, usando os planos subjectivos para elucidar a plateia que a simpática Sydney (Storm Reid) e o prestável James (Aldis Hodge) correm tanto perigo como Cecilia. "Nós" sabemos mais que "eles" e não deixamos de nos sentir desconfortáveis na cadeira, com aquela sensação de urgência para entrarmos pelo ecrã dentro, a avisar do perigo que correm.


O ano ainda agora começou, mas posso garantir que este "The Invisible Man" pode vir a ser um dos melhores thrillers de suspense de 2020. Aqui tudo se conjuga para alguns sustos e muito medo. Vão ter facas a voar, pegadas na carpete e cobertores a ser retirados, tudo a que temos direito acerca de homens invisíveis. Com a população fechada em casa por causa de um vírus, resta-nos estar conscientes que o isolamento protege-nos do COVID-19, mas não do marido de Cecilia.