sexta-feira, junho 24, 2016

10 DISCOS PORTUGUESES

 Não há nenhuma ordem especifica nesta organização. Não é "o melhor" que está em primeiro, nem é "o pior dos melhores" que está em último. A organização é arbitrária e aleatória, mas tem um sentido geral: sem estes discos, a música portuguesa não seria o que é!


Amália Rodrigues - "Amália Rodrigues" ("Busto"), 1962


O fado, puro e duro, na melhor Amália, escolhendo David Mourão Ferreira e Pedro Homem de Mello para poesia que lhe valeu alguns dissabores com a ditadura salazarista. Amália não é mais a menina-querida do regime, assume o seu lado rebelde, faz ouvir a sua voz, transforma o fado submisso numa música de revolta. Este disco não é só o melhor de Amália Rodrigues, é um disco central de toda a música portuguesa.

"Abandono" (David Mourão Ferreira)
Por teu livre pensamento
Foram-te longe encerrar
Tão longe que o meu lamento
Não te consegue alcançar
E apenas ouves o vento
E apenas ouves o mar
Levaram-te a meio da noite
A treva tudo cobria
Foi de noite numa noite
De todas a mais sombria
Foi de noite, foi de noite
E nunca mais se fez dia.

Ai! Dessa noite o veneno
Persiste em me envenenar
Oiço apenas o silêncio
Que ficou em teu lugar
E ao menos ouves o vento
E ao menos ouves o mar.

Ana Moura - "Para Além da Saudade", 2007

E ao terceiro disco, Ana Moura trás ao público o melhor que a nova geração de fadistas tem para dar ao fado. Ainda sem assumir o lado inovador que, nos últimos tempos, alguns artistas têm tentado introduzir, "Para Além da Saudade" mantém-se tradicional o mais possível, sem procurar rupturas. É fado, só!

"Búzios" (Jorge Fernando)
Havia a solidão da prece no olhar triste
Como se os seus olhos fossem as portas do pranto
Sinal da cruz que persiste, os dedos contra o quebranto
E os búzios que a velha lançava sobre um velho manto

À espreita está um grande amor mas guarda segredo
Vazio tens o teu coração na ponta do medo
Vê como os búzios caíram virados p'ra norte
Pois eu vou mexer o destino, vou mudar-te a sorte (bis)

Havia um desespero intenso na sua voz
O quarto cheirava a incenso, mais uns quantos pós
A velha agitava o lenço, dobrou-o, deu-lhe 2 nós
E o seu pai de santo falou usando-lhe a voz

À espreita está um grande amor mas guarda segredo
Vazio tens o teu coração na ponta do medo
Vê como os búzios caíram virados p'ra norte
Pois eu vou mexer o destino, vou mudar-te a sorte (bis)

À espreita está um grande amor mas guarda segredo
Vazio tens o teu coração na ponta do medo
Vê como os búzios caíram virados p'ra norte
Pois eu vou mexer o destino, vou mudar-te a sorte!


Clã - "Lustro", 2000

Não é só o melhor disco dos Clã, é um registo que marcou muito do que seria o (chamado) "rock português" para o novo milénio. A banda nunca abandonou o seu lado mais romântico, que já vinha de "Problema de Expressão", mas assumiu o lado mais rock, que dava alguns sinais em "GTI".

"Dançar Na Corda Bamba" (Hélder Gonçalves / Carlos Tê)
A vida é como uma corda
De tristeza e alegria
Que saltamos a correr
Pé em baixo, pé em cima
Até morrer

Não convém esticá-la
Nem que fique muito solta
Bamba é a conta certa
Como dança de ida e volta
Que mantém a via aberta

Dançar na corda bamba
Não é techno, não é samba
É a dança do ter e não ter
É a dança da Corda Bamba

Salta agora pelo amor
Ele dá o paladar
Mesmo que a tua sorte
Seja a de um perdedor
Nunca deixes de saltar

Se saltares muito alto
Não tenhas medo de cair (baby)
De ficar infeliz
Feliz a cem por cento
Só mesmo um pateta feliz

Dançar na Corda Bamba
Não é techno, não é samba
É a dança do ter e não ter
É a dança da Corda Bamba


José Afonso - "Cantigas Do Maio", 1971

Haveria sequer "música portuguesa" sem este disco? Os horizontes propostos em "Cantigas do Maio" são tão vastos e tão ricos, que qualquer registo musical posterior, virá aqui beber sempre alguma referência, mesmo que indireta.
Talvez existissem os Xutos & Pontapés, ou Rui Veloso, ou Mão Morta, mesmo que não houvesse "Cantigas do Maio", mas certamente seriam uns Xutos & Pontapés e um Rui Veloso e uns Mão Morta  muito diferentes... Para pior!

"Milho Verde" (José Afonso, a partir de uma quadra popular)
Milho verde, milho verde
Milho verde maçaroca
À sombra do milho verde
Namorei uma cachopa

Milho verde, milho verde
Milho verde miudinho
À sombra do milho verde
Namorei um rapazinho

Milho verde, milho verde
Milho verde folha larga
À sombra do milho verde
Namorei uma casada

Mondadeiras do meu milho
Mondai o meu milho bem
Não olhais para o caminho
Que a merenda já lá vem

Anamar - "Almanave", 1987

Estou a ver muitos olhos esbugalhados a olhar para esta capa, uns de surpresa outros de desprezo. Quero deixar aqui claro que nunca fui assíduo frequentador do Frágil dos anos 80 e 90, não me move nenhum fascínio especial pela Anamar enquanto pessoa, enquanto porteira. Ela nunca me fez favores à entrada do Frágil, nem nunca me recusou lá a entrada. Vivo em paz com a minha consciência, quanto ao meu gosto pela música da senhora, que nem sabe cantar lá muito bem.
Anamar adultera o fado para um formado definitivamente pop e intruduz algumas composições da sua autoria. No conjunto, é um dos albuns mais inovadores da música portuguesa, antecipando em 30 anos o que hoje alguns autores tentam fazer com o (chmado) "novo" fado.
A cantora tem deficiências óbvias na voz, não chega a tons mais elevados e falha no médios, mas não foi por isso que foi vitima de uma obscena campanha para acabar com a sua carreira. A Anamar vivia num mundo de invejas e ressentimentos, na noite do Bairro Alto, frequentada por pseudo-intelectuais (uns mais falhados que outros) e só por isso foi um cordeiro imolado no seu estatuto.
O resto, a música de "Almanave", essa aqui está para quem quiser ouvir.

"Canção Do Mar" (Ferrer Trindade / Frederico de Brito)
 Fui bailar no meu batel
Além do mar cruel
E o mar bramindo
Diz que eu fui roubar
A luz sem par
Do teu olhar tão lindo

Vem saber se o mar terá razão
Vem cá ver bailar meu coração

Se eu bailar no meu batel
Não vou ao mar cruel
E nem lhe digo aonde eu fui cantar
Sorrir, bailar, viver, sonhar contigo

Vem saber se o mar terá razão
Vem cá ver bailar meu coração

Se eu bailar no meu batel
Não vou ao mar cruel
E nem lhe digo aonde eu fui cantar
Sorrir, bailar, viver, sonhar contigo

Mão Morta - "Mutantes S21", 1992

E de repente, a música portuguesa ganha um estatuto realmente rock. Uma viagem alucinada (e alucinante) por várias cidades do mundo, começando em "Lisboa (Por Entre as Sombras e o Lixo" e acabando em "Shambalah (O Reino da Luz)".
A música contemporânea portuguesa já não deve nada a outras musicalidades anglo-saxónicas.

"Budapeste" (Adolfo Luxúria Canibal / Carlos Forte)
Cá vou eu no meu Traby
De bar em bar a aviar
Sempre a abrir a noite toda
Sempre a rock & rollar

Charro aqui charro ali
Mais um vodka p'ra atestar
Corro Peste corro Buda
Sempre a rock & rollar

As noites de Budapeste
São noites de rock & roll

P'las caves da cidade
São só bandas a tocar
Pondo tudo em alvoroço
Tudo a rock & rollar

Mulheres lindas de morrer
Mini-saias a matar
Não tem fim o reboliço
Tudo a rock & rollar

As caves de Budapeste
São caves de rock & roll

Carlos do carmo - "Um Homem Na Cidade", 1977

 Enquanto outros se esforçam ainda hoje para trazer algo de novo ao fado, como se o fado pudesse ser "novo" ou "velho", em 1977, Carlos do Carmo fez com a naturalidade do talento ímpar, o que muitos (ou todos, se calhar) ainda não conseguiram: o novo fado, não no sentido desesperado de lhe dar uma aparência, mas ir às suas entranhas e esventrar a música, espalhando-lhe as vísceras pela calçada. "Um Homem Na Cidade" é um disco onde a tradição se reclama de inovadora. E, a partir daqui, nada ficaria como dantes, também por culpa de poetas como Ary dos Santos.


"Um Homem Na Cidade" (Ary dos Santos)
Agarro a madrugada
como se fosse uma criança,
uma roseira entrelaçada,
uma videira de esperança.
Tal qual o corpo da cidade
que manhã cedo ensaia a dança
de quem, por força da vontade,
de trabalhar nunca se cansa.
Vou pela rua desta lua
que no meu Tejo acendo cedo,
vou por Lisboa, maré nua
que desagua no Rossio.
Eu sou o homem da cidade
que manhã cedo acorda e canta,
e, por amar a liberdade,
com a cidade se levanta.
Vou pela estrada deslumbrada
da lua cheia de Lisboa
até que a lua apaixonada
cresce na vela da canoa.
Sou a gaivota que derrota
tudo o mau tempo no mar alto.
Eu sou o homem que transporta
a maré povo em sobressalto.
E quando agarro a madrugada,
colho a manhã como uma flor
à beira mágoa desfolhada,
um malmequer azul na cor,
o malmequer da liberdade
que bem me quer como ninguém,
o malmequer desta cidade
que me quer bem, que me quer bem.
Nas minhas mãos a madrugada
abriu a flor de Abril também,
a flor sem medo perfumada
com o aroma que o mar tem,
flor de Lisboa bem amada
que mal me quis, que me quer bem.

Rui Veloso - "Mingos & Os Samurais", 1990

Muitos reclamam que "Ar de Rock" é o disco que realmente merece figurar aqui, mas esquecem-se que este "Mingos & Os Samurais" é, provavelmente, muito mais o verdadeiro Rui Veloso e Carlos Tê. Se é verdade que o primeiro mudou a face do rock português, a verdade verdadinha é que o segundo levou a música urbana portuguesa onde nenhum outro tinha ido.
Indo buscar influências às mais imprevisíveis das paragens, de Marco Paulo a Elton John, "Mingos & Os Samurais" não só tem uma coleção de êxitos incontornáveis - mas isso "Ar de Rock" também tinha, é verdade! -, como demonstrou que há um público transversal para os novos sons modernos.

 "Não Há estrelas No Céu" (Carlos Tê)
Não há estrelas no céu a dourar o meu caminho,
Por mais amigos que tenha sinto-me sempre sozinho.
De que vale ter a chave de casa para entrar,
Ter uma nota no bolso pr'a cigarros e bilhar?

A primavera da vida é bonita de viver,
Tão depressa o sol brilha como a seguir está a chover.
Para mim hoje é Janeiro, está um frio de rachar,
Parece que o mundo inteiro se uniu pr'a me tramar!

Passo horas no café, sem saber para onde ir,
Tudo à volta é tão feio, só me apetece fugir.
Vejo-me à noite ao espelho, o corpo sempre a mudar,
De manhã ouço o conselho que o velho tem pr'a me dar.

A primavera da vida é bonita de viver,
Tão depressa o sol brilha como a seguir está a chover.
Para mim hoje é Janeiro, está um frio de rachar,
Parece que o mundo inteiro se uniu pr'a me tramar!

Vou por aí às escondidas, a espreitar às janelas,
Perdido nas avenidas e achado nas vielas.
Mãe, o meu primeiro amor foi um trapézio sem rede,
Sai da frente por favor, estou entre a espada e a parede.

Não vês como isto é duro, ser jovem não é um posto,
Ter de encarar o futuro com borbulhas no rosto.
Porque é que tudo é incerto, não pode ser sempre assim,
Se não fosse o Rock and Roll, o que seria de mim?

A primavera da vida é bonita de viver,
Tão depressa o sol brilha como a seguir está a chover.
Para mim hoje é Janeiro, está um frio de rachar,
Parece que o mundo inteiro se uniu pr'a me tramar!

Tantra - "Mistérios e Maravilhas", 1977

Antes, muito antes do boom do rock portugês, muito antes do(s) "Chico Fininho", "Cavalos de Corrida", "Elevador da Glória", um grupo viciado em Genesis e Yes - o que lhes valeu algum desprezo na altura - enchia o Coliseu de Lisboa para levar à cena um espetaculo conceptual, psicadélico e alucinante. "Mistérios e Maravilhas" é o primeiro disco realmente rock, cantado em português, sem concessões ao politicamente correto ou ao gentio que fazia a(s) moda(s).
É verdade que estive em Cascais em 1975, para ouvir "The Lamb Lies Down on Broadway" - e poderia ter vivido igualmente feliz, se não estivesse -, mas, muito mais importante, também estive no Coliseu de Lisboa em 1978 - e, isso sim, não poderia ser a mesma pessoa, se isso não tivesse acontecido!..

"À Beira do Fim"

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